Faz algum tempo que não escrevo aqui. É que a vida me atropelou dessas últimas semanas. Sabe quando isso acontece? Pois é. Em meio a tanto, muita coisa linda aconteceu, entre elas, o mais poderoso de nossas capacidades: a de conexão com o outro.
Passei uma semana em São Paulo para a Bienal Internacional do Livro, a primeira da minha vida e a primeira como Influencer/Blogueira. O processo dessa presença foi bem engraçado, digamos. Eu comecei a falar de livros na internet há um ano, em 2023, e não fazia ideia da proporção que isso tomaria nem mesmo dos processos que eu desenvolveria. Estava refletindo isso hoje, como a nossa capacidade de transformação e continuação é maravilhosa. Às vezes a vida da um jeito de unir algumas coisas e fazer acontecer outras tantas inesperadas.
Na semana da Bienal do Livro, eu conheci muita gente incrível, vivi dias que estava precisando: formação de novas amizades, mais conexão e perceber que o que a gente faz aqui tem peso e importância sim! Logos depois da volta de São Paulo, meus pais sofreram um acidente de moto (estão todo bem e saudáveis), o que foi um baita susto para a gente. São momentos assim que nos dão um choque de realidade: a vida é curta e para tudo mudar, é só uma questão de segundos.
Acho que podem imaginar quantas reflexões e sentimentos passaram por mim nas últimas semanas…
Literatura é sentir
Uma das minha maiores crenças na vida é o poder que a literatura e a escrita têm de transformar as vidas. Parte disso vem da capacidade que os livros possuem em nos tocar exatamente onde deveria naquele exato momento.
Esses últimos dias tive a prova viva disso. Uma das minhas leituras atuais tem sido “Travessuras da menina má”, um livro escrito por Mário Vargas Llosa, que ganhou o Nobel de Literatura com essa obra e, sinceramente, com razão! É um livro espetacular, perfeitamente ambientado historicamente e composto por fatores jamais esquecidos. É daqueles livros que você vai ler e nunca mais esquecer como se sentiu.
Enquanto eu lia, surtava com os acontecimentos nos stories do meu Instagram, o livro gera uma aflição que mal consigo justificar. Basicamente, sabemos o que vai acontecer na narrativa, porque ela é uma repetição contínua dos mesmos fatos, mas os acontecimentos que intercalam esses fatos, dão ao livro uma característica inédita de quase suspense, uma apreensão, curiosidade e indignação.
Algumas pessoas que me seguem já leram essa obra, mas todos há alguns anos atrás. Afinal, ela foi lançada em 2006. Que não seja por isso, TODAS as pessoas que interagiram comigo acerca desse livro, lembravam exatamente do sentimento que ele havia deixado. A história por completo acaba sendo perdida no ciclo infinito de nossas memórias, mas a sensação e os sentimentos despertos durante a leitura jamais podem ser deixados. O poder que a literatura tem em nos deixar ávidos e sensíveis é belo!
Quando você gosta de um livro, tenho certeza que lembrará dele pelos bons sentimentos que lhe foram despertados, pela sensação maravilhosa de entrar naquelas páginas e se aprofundar como se ali pertencesse. Da mesma forma quando você lê uma obra que não fez tanto sentido ou te trouxe más sensações, porque esse é o poder da literatura. Somos lembrados por isso!
Acredito ainda que a capacidade de transmitir esses mesmos sentimentos ao fazer uma resenha ou publicar, seja o que for, sobre o livro, é um dom imperdível. É o que pode mover a literatura e esse despertar. Tanto é que grande parte das minhas experiências que despertaram nos outros a vontade de ler, são fruto desses sentimentos compartilhados. E, assim, deixo aqui: demonstre, indique e compartilhe seu hobby e sua leitura sem medo, tenha a certa convicção que isso despertará o outro!
Voltando um pouco à minha leitura atual, Mario Vargas Llosa foi o autor escolhido pelo meu clube do livro. Estamos dando a volta ao mundo mensalmente e o escolhido da vez foi o Peru.
“Travessuras da menina má” foi uma escolha certeira. Somos um grupo de mais de 20 pessoas, mas grande parte dessas não acompanham as leituras. Já lemos mais de 4 livros em conjunto e, a oportunidade de compartilharmos nossas sensações e sentimentos com a literatura é muito poderosa! Nos encontramos de 15 em 15 dias pelo discord e é um momento maravilhoso, não só sobre o que lemos, mas também de compartilhar momentos, situações e sentimentos pessoais. Nos tornamos amigas à distância, mais uma relação que a literatura uniu!
Bom, nessa oportunidade, passamos a pesquisar sobre Mario Vargas. Descobrimos que ele já até entrou no soco com Gabriel Garcia Márquez… um homem de mil vidas, que já viveu e trabalhou em diversos países e áreas, o que, com certeza, lhe deu essa capacidade magnífica de correlacionar tantos acontecimentos e construir uma narrativa tão complexa e, ao mesmo tempo, coesa.
Nesse livro, Mario Vargas, nos apresenta Ricardo. Um homem que leva um vida pacata, sem muito extraordinário e espetacular, sem muitos amigos e expectativas sobre a vida. Acompanhamos, junto a ele, um amor de uma vida inteira, que o perseguiu e transformou em quem é em todos os lugares do mundo em que esteve.
Essa jornada amorosa começa no Peru, meio sem pé nem cabeça, porque já parte de uma mentira. A mulher pela qual se apaixona é a “chilenita”, uma jovem maravilhosa que residia no Peru, mas era nacional do Chile, por isso o apelido. Mais tarde, ela é desvendada. Chilenita não era chilena e tudo que havia compartilhado sobre si era mentira. Por isso, ela some, evapora, mas a paixão de Ricardito continua.
Ele vai residir em Paris e, durante a sua vida adulta, em um ciclo interminável de reencontros, Ricardito sempre se deparada com Chilenita, mesmo que não procure e passe pela tentativa de superar esse amor, ele não consegue. A vida dá um jeito de proporcionar esse encontro repetidas vezes, mas ela estava sempre com uma nova personalidade, um novo nome e um novo marido. Encontro esse que sempre termina da forma mais trágica possível. A vida de Chilenita é um mistério e a única certeza é que eles vão se encontrar e sair feridos dessa.
Mas como desvencilhar de um amor tão forte, complexo e, ao mesmo tempo, doloroso? A relação se desenvolve dentro de uma certa toxidade, o que cria uma adorável tensão entre o cômico e o trágico, uma apreensão em que, teoricamente, já sabemos o que está por vir, mas mesmo assim, tencionamos.
Que amor é esse que corrói tanto cada um deles? Ou melhor, que corrói, principalmente, Ricardito. Mesmo assim, ele a encontra, a busca, se dedica e acredita que ela é o amor de toda sua vida. Por mais que doa, que se machuque, que transpareça a capacidade de abuso sentimental entre ambos. A ausência do amor saudável ainda coincide com a época que o livro é retratado. São anos de guerra e muito sofrimento no Peru, novas descobertas dolorosas pelo mundo como a AIDS, bem como novas vivências como a Londres das drogas e do mundo hippie.
Essa leitura foi, ainda, transpassada por “a pequena coreografia do adeus” de Aline Bei, uma escritora brasileira. E de uma forma estranhamente bela, elas se relacionaram. Em primeira vista, nada parece conter uma semelhança entre as histórias. Afinal, foram escritas em épocas completamente distintas, a ambientação é completamente diferente e o tema não está intimamente relacionado logo de cara. Mas alguma questão me chamou a atenção.
Em “a pequena coreografia do adeus” acompanhamos a vida de Júlia, que nos leva a uma viagem de desamor desde sua infância até a fase adulta, principalmente, no âmbito familiar, mais especificamente em relação à sua mãe. Ela não superava o abandono do marido e o marido não superava que foi casado com a esposa. A agressividade dela deixou marcas contínuas na vida de Júlia.
Mas como os dois livros se relacionam?
Acredito que pela concepção errada do que é o amor. Bell Hooks, em seu livro “tudo sobre o amor”, relata que o amor é ação, é cuidado, é atenção e é completamente inexistente em um lar abusivo. Abuso e amor não coexistem. É completamente inconcebível que se diga que há o amor onde não há o devido cuidado, e onde há o abuso, seja ele físico ou psicológico.
“começar por sempre pensar no amor como uma ação, em vez de um sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma responsabilidade e comprometimento”, Bell Hooks, Tudo sobre o amor
Júlia relata diversas atitudes abusivas de sua mãe, sejam elas de forma física ou emocional. São relatos que grudam em nossos corações pela dor de ver uma pessoa crescendo em um lar abusivo. E o quanto desse abuso não acaba sendo replicado? Em sua infância, Júlia reagia conforme aprendia, afinal, era uma criança que seguia exemplos. O exemplo que tinha em casa era a agressão, que replicava fora dela.
Chilenita também passou por relações abusivas onde não existia o verdadeiro amor e, assim, passou a replicá-las em diversas outras relações, como a que teve com Ricardito. Afinal, “são ações que constroem sentimentos”, como disse Bell Hooks. Ações que não são guiadas pelo amor constroem relações desamorosas, mas que, na visão deturbada que temos do amor, podem ser tidas como normal ou boa.
O abuso que Chilenita sofreu não se assemelha nem um pouco ao abuso que Júlia enfrentou. São realizadas por atores diferentes e em contextos distintos, mas criamos quem somos pelo transcurso de todas as relações e sentimentos que enfrentamos!
Experiências de construção em ambientes abusivos distorcem o que entendemos sobre o amor:
“não podemos dizer que amamos se somos nocivos ou abusivos”, Bell Hooks, Tudo sobre o amor
Assim, tenho enfrentado aquela situação de impotência nessas leituras. Sabe quando dá vontade de pegar na mão do personagem, sentar com ele e explicar que tudo aquilo que lhe tem ocorrido não é nem um pouco positivo? Que essa ideia de que ele possa ter de que aquilo é amor, na verdade não é?!
É exatamente assim que tenho me sentido, principalmente na relação em “Travessuras da menina má”, porque são personagem completamente cegos e afundados nessa percepção errônea e perigosa. Júlia, em “a pequena coreografia do adeus” nos leva, também, para sua vida adulta, em que tenta encontrar o amor e a felicidade mediante a solidão e abuso que sofreu em casa, com esse sentimento errôneo do que é amor.
O amor é a ação capaz de desenvolver os sentimentos mais poderosos que somos capazes como seres humanos. Ler e sentir as obras que versam sobre todo o qualquer tipo de amor nos coloca a pensar e enxergar de forma crítica como esse amor também esteve presente em nossas vidas.
Muitas das pessoas que chamaram para dizer o quanto amaram “a pequena coreografia do adeus” enfrentaram um espaço de identificação quanto a esse tipo e experiência amorosa do berço. A literatura tem essa íntima capacidade de nos fazer experienciar o que enfrentamos aos olhos do outro, nos fazer ver por fora, enxergar de forma crítica e, principalmente, nos ajudar a enfrentar.
“Quando amamos, expressamos cuidado, afeição, responsabilidade, respeito, compromisso e confiança”, Bell Hooks, Tudo sobre o amor.
Que esteja intimamente ligado a te fazer sentir verdadeiramente bem e jamais questionar sua profunda bondade e capacidade de amar.
Um agradecimento
Essa é a décima edição dessa newsletter! Fico muito feliz em compartilhar isso e de ter enfrentado um medo contínuo de jamais ser lida, ter a coragem de criar esse pequeno espaço.
Obrigada por me lerem, por me acompanharem e por estarem por aqui. Isso é realmente muito importante para mim!